Calendário Atualizado


 Calendário Atualizado

17/05/2012 – Capítulo 2 do livro “Psicologia em Diálogo com o SUS”
24/05/2012 – Capítulo 8 do livro “Psicologia em Diálogo com o SUS”
31/05/2012 – Artigo “A atuação do psicólogo no SUS: análise de alguns impasses”.  http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v30n2/v30n2a13.pdf  
07/06/2012 - Artigo “Psicólogos no Processo de Reforma Psiquiátrica”. http://www.scielo.br/pdf/pe/v14n2/v14n2a07.pdf
14/06/2012 - Artigo “Psicólogos na Estratégia Saúde da Família” http://www.scielo.br/pdf/pcp/v31n4/v31n4a08.pdf
21/06/2012 - Artigo “Psicologia da Saúde x Psicologia Hospitalar”.  http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v24n3/v24n3a07.pdf
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13 abril 2012

Conteúdos e Calendário GEPEPS

Olá participantes do GEPEPS etapa II, utilizaremos os seguintes conteúdos e textos em nosso calendário de atividades:


CONTEÚDOS E CALENDÁRIO DO GEPEPS - ETAPA II

I)                    Conteúdos
1-      Histórico do SUS
2-      Histórico da inserção da Psicologia nas políticas públicas de saúde no Brasil
3-      Princípios, Diretrizes e Desafios do SUS
4-      Interfaces Psicologia e SUS
5-      Áreas de Atuação da Psicologia no SUS: caminhos percorridos e desafios a enfrentar
6-      Outros

Observação: tais conteúdos serão abordados de acordo com a dinâmica do grupo e interesses desenvolvidos nos encontros.

II)                  Calendário

19/04/2012 – Capítulo 1 do livro “Psicologia em Diálogo com o SUS”
26/04/2012 – Artigo “A Psicologia e o Sistema Único de Saúde: quais interfaces?” -  http://www.scielo.br/pdf/psoc/v17n2/27040.pdf
03/05/2012 – Artigo “A Integralidade na Prática (ou sobre a prática da integralidade)”. http://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S0102-311X2004000500037&script=sci_abstract&tlng=enen
10/05/2012 – Capítulo 2 do livro “Psicologia em Diálogo com o SUS”
17/05/2012 – Capítulo 8 do livro “Psicologia em Diálogo com o SUS”
24/05/2012 – Artigo “A atuação do psicólogo no SUS: análise de alguns impasses”.  http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v30n2/v30n2a13.pdf e Artigo “Psicólogos no Processo de Reforma Psiquiátrica”. http://www.scielo.br/pdf/pe/v14n2/v14n2a07.pdf
31/05/2012 – Artigo “Psicólogos na Estratégia Saúde da Família” http://www.scielo.br/pdf/pcp/v31n4/v31n4a08.pdf e Artigo “Psicologia da Saúde x Psicologia Hospitalar”.  http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v24n3/v24n3a07.pdf
07/06/2012 – Seminários temáticos sobre:
- Psicologia e a Clínica (ampliada) no SUS/Saúde Coletiva
- Psicologia Social-Comunitária e o SUS/Saúde Coletiva
14/06/2012 – Seminários temáticos sobre:
- Psicologia, Ética e Cuidado em Saúde
- Psicologia e Reforma Psiquiátrica
21/06/2012 – Avaliação e Perspectivações.
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03 novembro 2011

Texto Sobre Relação Médico Paciente

Olá participantes do GEPEPS, o texto abaixo é o que vai ser debatido por todos na próxima semana dia 09 de novembro. Lembro a todos da necessidade de elaboração dos artigos ou trabalhos finais do semestre 2011.2 do GEPEPS até o prazo de 20 de Dezembro de 2011. Os trabalhos devem ter, no mínimo 4 laudas, formatação -Times New Roman 12, espaçamento 1,5, sem espaçamento entre parágrafos - e contar com a discussão de 4 artigos na temática escolhida. Estes podem ser feitos em grupo ou individual.
http://www.scielo.br/pdf/csp/v15n3/0505.pdf

Até próxima quarta,

Léo B. Nepomuceno
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17 outubro 2011

Foucault

[Excertos. Foucault. Guilherme Castelo Branco. Mestre em Filosofia e doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). in: Os Filósofos. Clássicos da Filosofia, Vol. III, Rossano Pecoraro (org)]
[...]
Foucault

O filósofo e o seu tempo

Nascido em Poitiers (França), em 1926, Paul-Michel Foucault realizou seus estudos superio¬res na École Normale Supérieure, nas áreas de filosofia e psicologia, onde assistiu a cursos de al¬guns dos mais célebres pensadores franceses de sua época, como Merleau-Pontv. Interessado, inicialmente, pelas correntes de psicologia, teve uma breve experiência como professor assisten¬te dessa cadeira na Universidade de Lille, cargo que abandonou em 1955 para tornar-se leitor de francês em países diversos como Suécia, Alemanha, Polônia, Tunísia. Sua tese de doutorado, Folie et déraison, foi escrita no exterior, assim como seus primeiros livros mais conhecidos História da loucura (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966). Neles, cabe notar a influência de Canguilhem e Dumézil.
Apos o sucesso e o reconhecimento, retorna a Paris em 1968, onde trabalhou na re¬cém-fundada e também polêmica Universidade de Paris VIII (onde trabalhou, entre outros, com Gilles Deleuze), de onde saiu para ingressar no Collège de France (1970), instituição na qual trabalhou até sua morte. Ainda nos fins dos anos 1960, publicou o Arqueologia do saber (1969), texto de caráter metodológico e teórico, no qual procura explicar os fundamentos de que partiu nos seus livros anteriores. Na aula inaugural do Collège de France, que deu origem ao opúsculo A ordem do discurso, Foucault deixa claro que mudaria o rumo de suas pesquisas, que passaram a incidir nas práticas disciplinares e nas relações entre saber e poder, e que tem no Vigiar e punir (1974) a expressão maior de suas preocupações no período. Também nos anos 1970 publicou o Historia da sexualidade I. A vontade de saber (1976), e autorizou a publicação de coletânea de arti¬gos e pequenos textos que no Brasil recebeu o título de Microfísica do poder (1976).
O texto A verdade e as formas jurídicas (1974) é resultado de curso por ele ministrado na PUC-Rio. Alguns textos publicados no Microfísica do poder, por sua vez, são conferências que Foucault proferiu no IMS da UERJ. O Brasil, diga-se de passagem, foi visitado muitas vezes por Michel Foucault, sobretudo na década de 1970, onde deixou amigos e admiradores de sua obra. O filósofo brasileiro que primeiro difundiu as idéias de Foucault no país, de maneira sistemáti¬ca, foi Roberto Machado, da UFRJ. Sua última passagem pelo Brasil foi em 1978, época em que ficou no país por vários meses e viajou pelo Nordeste. A partir desta época, Foucault frequentou seguidamente os Estados Unidos, onde estabeleceu vínculos intelectuais profundos, dentre ou¬tros, com Dreyfus e Rabinow.
Nos anos 1980, Foucault ainda publicou outros dois volumes da coleção História da sexuali¬dade, em 1984, coleção prevista para ter seis tomos, e que ficou incompleta devido a morte do pensador francês.
Em 1994, passados 10 anos de sua morte, a Editora Gallimard publicou detalhada coletânea de textos e entrevistas sob o título Dits et écrits, em quatro grandes volumes, onde estão presentes elementos preciosos para todo pesquisador e estudioso interessado nas diversas fases do pensa¬mento foucaultiano. Cabe alertar para o fato de que tal obra foi realizada com a ajuda de persona¬lidades e amigos de Foucault espalhados pelo mundo, e que, apesar de extensa, não consiste ain¬da numa obra completa. Vez por outra, um trabalho novo é "descoberto", relembrado por algum interessado. Ademais, seus cursos no Collège de France ainda estão sendo publicados (já saíram no Brasil, até agora, Os anormais, Em defesa da sociedade, A hermenêutica do sujeito, O poder psiquiá¬trico), com preciosas informações para os estudiosos de sua obra, assim como para os especialis¬tas em ética e filosofia política.
Como acontece com tantos outros pensadores, delimitar com precisão os diversos momen¬tos de seu pensamento, assim como as motivações que levaram Foucault a alcançar em certos campos temáticos e metodológicos, continua sendo motivo de controvérsia. Certamente, a fase ético-política (1978-1984) é a mais questionada e controvertida, uma vez que não existe uma ex¬posição mais sistemática e detalhada em forma de livros; ela está esboçada apenas em entrevistas e artigos. Mas a dissimetria entre o que Foucault expõe em seus dois últimos livros da Historia da sexualidade e o enorme volume de pequenos textos e entrevistas, explica de forma irrefutável o tamanho de seu interesse pela atualidade e pelas lutas em defesa da liberdade na sociedade de controle e de gestão da vida. Não deixa de ser digna de nota sua referência constante a Kant, en¬tre fins dos anos 1970 e nos anos 1980, como um pensador da Modernidade que reconduz o de¬bate em torno da liberdade.
É importante observar que Foucault participou ativamente de inúmeros manifestos e movi¬mentos em prol da ampliação das liberdades, em defesa de grupos marginalizados, em defesa de países do Terceiro Mundo. No Brasil, por exemplo, manifestou-se no caso Vladimir Herzog. Chegou a escrever uma série de reportagens no início da Revolução Iraniana, para onde foi ver os fatos de perto. Era um pensador voltado para o presente e sua atuação como militante é uma rubrica importante de sua biografia.
Michel Foucault morreu, aparentemente de Aids, em junho de 1984, aos 58 anos.

A filosofia de Foucault
Dos filósofos contemporâneos, Michel Foucault é o pensador que circula com mais desen¬voltura nos mais diferentes campos do saber. A amplitude de sua erudição e o amplo escopo de seus interesses ultrapassou o campo restrito da filosofia. Foucault lembra outros grandes gênios do pensamento ocidental: seu talento não está aprisionado ao domínio específico de sua formação universitária. Por outro lado, as dimensões de suas reflexões e sua notoriedade propiciam tantas e tantas interpretações, algumas mais acertadas e outras totalmente infundadas, que é uma tarefa difícil escrever sobre o filósofo francês mais famoso do final do século XX.
Surgido num meio intelectual habituado a manifestos e a grupos formadores de opinião, Foucault não é obvio nem está facilmente inserido no mundo dos jovens talentos da filosofia francesa dos começos dos anos 1960. Poderia mesmo ser caracterizado como pensador alternativo, que sur¬giu de forma inesperada. Foucault morava fora da França e tinha vivido em diferentes países, a trabalho, como leitor, adido cultural, professor de cultura e literatura francesa, até que seu traba¬lho de doutorado foi publicado e atraiu a atenção da intelectualidade da época: o História da Loucura na Idade Clássica ( 1961 ), não somente abriu as portas para um relativo sucesso, mas também tor¬nou-se um vetor de interesse pelos livros do jovem pensador, dentre eles Doenças mental e personalidade (1954), livro sobre o qual Foucault afirmava que gostaria de não tê-lo escrito.
A leitura da obra de Foucault que propomos ao leitor é, acima de tudo, centrada na ética e na filosofia política, pois o pensamento de Foucault adensa-se crescentemente neste campo de re¬flexão, em especial em sua maturidade intelectual. Tal interesse do filósofo contemporâneo pela filosofia política nos induz a propor em três distintas fases do pensamento de Foucault, tendo como referência seus diferentes modos de se comportar diante de seu desafio teórico. A primeira fase, que cobre os anos 1960 é a da "arqueologia do saber". Nos anos 1960, de fato, a preocupação com a ética e a política não é predominante nos seus livros, mas está presente em alguns de seus textos e entrevistas; a segunda fase, que começa com a entrada de Foucault no Collège de France, em 1969, e que vai até 1977, denomina-se, com toda pertinência, como "analítica do poder" (al¬guns a chamam, mas explicam pouco o que querem dizer com isto, como "genealogia do po¬der"); a terceira fase, que se inicia em 1978 e vai até sua morte, em 1984, pode ser denominada, com toda propriedade, como "fase ético-política", centrada nas relações de poder e nas resistên¬cias ao poder (alguns também denominam este período como "último Foucault " )
Foucault conquistou ampla notoriedade a partir da publicação de seu livro As palavras e as coisas, pela Gallimard, em 1966, que tornou-se um livro cult nos meios midiáticos e universitários. Foucault suscitou a renovação da epistemologia das ciências humanas, e trouxe uma série contribuições, nesta fase, ao debate histórico-crítico da epistemologia e da teoria das ciências de versão francesa. Dentre as hipóteses levantadas no grande e denso volume do As palavras e a s coisas, talvez as mais dignas de nota sejam: 1) todo o pensamento, toda a prática, toda fala de uma época são coordenadas, em último caso, por um conjunto pequeno e restrito de idéias funda¬mentais, que o pensador francês intitula por enunciados, e que constituem verdadeiras matrizes anônimas de toda a intelecção deste tempo determinado; 2) os enunciados situam-se numa re¬gião mediana entre a teoria e a experiência, e determinam estes dois campos; 3) tais matrizes enunciativas sofrem grandes transformações de tempos em tempos, e modificam toda a configu¬ração de saber, o que faz com que, entre as épocas, diferentes camadas de discursos e práticas se superponham (uma vez que são produtos da influencia de diferentes matrizes enunciativas), o que torna possível que se faça, posteriormente, uma arqueologia do saber; 4) a nossa época, ca¬racterizada pela irrupção das chamadas "ciências humanas", tem como marca o aparecimento de uma nova e antes inexistente noção, o homem, que não existia até o século XVIII, uma vez que até então ele era senhor da representação, condição prévia de todo conhecimento, não podendo ser tematizado como um objeto para o saber; 5) para passar a existir enquanto objeto de conheci¬mento, o homem torna-se nebuloso e desconhecido, compreensível somente a partir do impensa¬do com o qual faz par e é disto que tratam as novas ciências ou saberes que estudam o homem; 6) finalmente, uma das proposições mais polêmicas do Les mots et les choses, é a de que o homem, in¬venção recente da arqueologia de nosso pensamento, este mesmo homem deixará de existir em breve: "o homem é uma invenção do qual a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente a data recente. E, talvez, o fim próximo".
Os livros descritivos que compõem a fase arqueológica, deste modo, sempre mostram varia¬ções históricas ou distintas percepções acerca de experiências vividas associadas a teorias, como a loucura, a prática clínica, o estatuto de cientificidade, as ciências humanas [...]. Sem utilizar os critérios de causalidade histórica tradicional, estas obras descrevem, de forma exaustiva, como as percepções e experiências em foco foram se diferenciando e se superpondo, numa ordem des¬contínua e sempre renovada, prescindindo da noção de causalidade histórica. Exatamente por isto, não se trata de uma história das idéias ou das práticas, mas de uma arqueologia, ou seja, da descrição de diferentes configurações de saber, que se apresentam em diferentes camadas ou es¬tratos, na sucessão do tempo, independentemente das noções de crescimento racional, progres¬so espiritual, aumento da complexidade, etc. Na arqueologia, portanto, temos a apresentação de contextos, ou experiências da ordem do saber, sem necessidade de se fazer qualquer recurso à idéia de origem e finalidade em história.
Ademais, nos anos 1960, bem ao sabor das novas vagas do pensamento, Foucault partilha de algumas idéias de grupos estruturalistas, como o Grupo Théorie, liderado por Louis Althusser. Dentre elas, vale a pena ressaltar a seguinte: a de que existem conhecimentos e discursos, reali¬zados de forma não-autoral (ainda que exista alguém capaz de postular um direito de autoria), advindos de um campo de pensamento que prescinde do sujeito do conhecimento cartesiano. O anti-humanismo e o anticartesianismo de Foucault revela-se, de modo patente e inequívoco, em entrevista publicada na revista Quinzaine Littéraire, em 1966, onde Foucault declara: "em todas as épocas, o modo como as pessoas refletem, escrevem, julgam, falam (até mesmo nas ruas, nas conversas, e nos escritos mais cotidianos), inclusive o modo como as pessoas sentem as coisas, o modo como sua sensibilidade reage, toda sua conduta é comandada por uma estrutura teórica, um sistema, que muda com as idades e as sociedades - mas que está presente em todas as idades e sociedades” [...].
O sistema, na percepção de Foucault , estaria por detrás do Eu, do Cogito; e consiste num pensamento anônimo, sem sujeito nem identidade, que sobredetermina o eu, a consciência. O sistema é para o pensamento e para o comportamento humano um campo de inteligibilidade fundamental e primeiro. Efeito da lógica interna do campo estrutural, o sujeito, tal como Foucault o concebe neste momento, é um efeito de superfície, é espuma que reverbera a força das on¬das, é decorrência da influência de algo que o constitui e secreta seu pensamento e sua vida. O eu penso é substituído, na época contemporânea, pelo Isto pensa, e só restaria descrever o processo de constituição do eu pelo isto. Aí sim, temos a noção verdadeiramente contemporânea de sujeito, entendido como tramado e constituído pela ação do sistema. Certas consequências são duras: há que se deixar de lado a crença de que seria possível se transformar o mundo através de um ato de vontade e consciente, individual ou coletivo.
Em entrevista de 1967, Foucault explicita suas idéias sobre as relações entre política, ética, controle e burocracia. Comecemos por seu anti-humanismo em política: "na realidade, os pro¬blemas que são levantados aos que fazem política são problemas como o de saber se é preferível deixar aumentar o índice de crescimento demográfico, se é melhor apoiar a indústria pesada ou a pequena indústria, se o consumo, o aumento de consumo, podem apresentar numa conjuntura determinadas vantagens econômicas ou não. Eis os problemas políticos. Neste contexto, jamais encontramos "homens" . A linha argumentativa que o filósofo segue nesta entrevista é de que as questões políticas se fazem em torno tão somente do modo de funcionamento sócio-econômico e da possibilidade de aumentar o controle e a eficácia do sistema, sem nenhum recurso real à mo¬ral e à felicidade humana. Para Foucault, sem dúvida, a política é tarefa funcional de controle, e na sua visão a ética, quando associada à política, é tão-somente uma consequência imaginária da lógica do controle do funcionamento econômico-social, fundada na perspectiva, cínica ou ingê¬nua, dos tecnocratas e assemelhados, que fingem ou acreditam agir em nome do bem comum: "os burocratas, eles é que são humanistas. A tecnocracia é uma forma de humanismo. Eles consideram, com efeito, que são os únicos a deter o jogo de cartas que permite definir o que é a 'feli¬cidade dos homens' e o modo de realizá-Ia. A passagem, é claro, é extremamente irônica.
A promessa de um mundo melhor ou de forma de vida capaz dc alterar o espaço público, na perspectiva sistêmica adotada então por Foucault, fica minimizada a pequenos e periféricos as¬pectos da existência, como a liberdade individual e o prazer. Por outro lado, ele sustenta uma convicção tanto teórica como pessoal, que não deixa de ser determinante no seu pensamento po¬lítico e ético nos anos 1960: "ora, eu não creio que a noção de felicidade seja verdadeiramente pensável. A felicidade não existe, a felicidade humana ainda menos" [...] Todavia, vale a pena lem¬brar, tal convicção não significa dizer que a vida não valha a pena ser vivida, nem que possa ser prazerosa e agradável. Toda a aposta de Foucault está nisto: tornar a vida plausível sem ter que recorrer a otimismos infundados e imaginários.
A articulação do anti-humanismo, da idéia de sistema, e da idéia de arqueologia, portanto, leva a um poderoso instrumento de quebra de evidências teóricas e históricas. É claro que isto não é nem um desconstrutivismo filosófico nem um niilismo intelectual. A tarefa filosófica de Foucault é prepositiva e consiste em lançar as bases teóricas e metodológicas para se fazer novos modos de investigação do passado histórico e do próprio presente. Como o filósofo faz questão de repetir, ao longo de toda a sua obra, que sua questão maior é o presente: "eu procuro diagnos¬ticar, fazer o diagnóstico do presente: dizer o que nós somos, hoje, e o que significa, hoje, dizer o que nós dizemos. O trabalho de escavação sobre nossos pés caracteriza o pensamento contempo¬râneo, desde Nietzsche, e neste sentido posso me declarar filósofo" [...]. A arqueologia do saber, neste sentido, é participar deste trabalho de diagnóstico do presente, pois "tal atividade de diag¬nóstico comportaria um trabalho de escavação sob os próprios pés para estabelecer como se constituiu, antes dele (o presente), todo este universo de pensamento, de discurso, de cultura, que era o seu universo .
O último livro dos anos 1960, o Arqueologia do saber, livro escrito por Foucault para explicar as inovações teórico-metodológicas e o campo de atividade aberto por seu universo conceitual, ao invés de ser o ápice de um processo de elaboração, na verdade revela as inconsistências entre projeto arqueológico e sua efetivação. Foucault deixa evidente seu mal-estar com a idéia de siste¬ma (como o sistema apresenta-se na prática vivida?); no livro, igualmente, o filósofo interro¬ga-se sobre a pertinência de suas idéias sobre os enunciados, de caráter imaterial e estrutural, so¬bre os quais inexistem quaisquer parâmetros seguros que certifiquem quais seriam suas reais in¬fluências sobre a multiplicidade das idéias produzidas num determinado momento. Afinal, uma parte pode explicar um todo? Por que realizar tal redução do múltiplo a uma parte? Por que não estudar os discursos em suas vinculações com a multiplicidade das experiências vividas, em todas as suas modalidades, sem se preocupar em obter certos conteúdos prévios ou a priori ?
As inquietações que comparecem no A arqueologia do saber são respondidas por Foucault no ano seguinte, quando num grande salto teórico, já em sua aula inaugural do Collège de France, as idéias de sistema e de enunciado são substituídas pelas noções de acontecimento e de campos de força, aplicados aos campos discursivos. Nesta aula inaugural, que deu origem ao opúsculo A or¬dem do discurso, surge uma hipótese nada estruturalista: os discursos são construídos, proferidos, moldados, organizados a partir de diferentes campos de poder, o que significa dizer que eles de¬vem ser considerados em sua multiplicidade histórica e social sempre associados a práticas de poder. Discursos como os religiosos, que são doutrinais, são bastante diferentes dos discursos científicos, com modos de organização discursiva diversos. Um saber científico legitimado é percebido diferentemente de um saber que busca obter um estatuto científico, muitas vezes sem conseguir, por exemplo, como na distância que existe entre a física e a lógica. O senso comum, por sua vez, regula-se de modo diferente que discursos e comportamentos místicos. O fato, enfim, é que os discursos são organizados obedecendo a princípios, a padrões epistemológicos, a públicos e a circunstâncias diversificadas, o que implica em se afirmar que todos estão submeti¬dos a diversas pressões históricas e sociais, com estatutos, recepções e graus de importância tam¬bém diversificados. Por outro lado, Foucault procura mostrar que os discursos devem ser consi¬derados como acontecimentos, isto é, como efeitos de relações de força, onde nada existe acima e abaixo do mundo histórico e social que nos cerca. A partir de então, estão criadas as condições para a análise de um dos temas mais estudados pelo Foucault da fase da analítica do poder: as re¬lações entre saber e poder.
Os vínculos entre saber e poder levam, finalmente, o filósofo contemporâneo criar uma nova concepção de poder, elaboração que mobilizou Foucault devido a insuficiência descritiva das teorias do poder tradicionais, liberalistas ou marxistas. A razão pela qual Foucault desconsi¬dera as teorias do poder dominantes nos últimos séculos é que elas trazem idéias próprias sobre o que seria um poder de Estado legítimo, quais seriam seus limites e qual foi sua origem. A analí¬tica do poder, proposta por Foucault, tem um outro tipo de percepção do poder, que é, sobretu¬do, histórica e metodológica: "minha pesquisa incide nas técnicas do poder, na tecnologia do poder. Ela consiste em estudar como o poder domina e se faz obedecer. Após os séculos XVII e XIX, essa tecnologia desenvolveu-se enormemente; entretanto, nenhuma pesquisa sobre este tema foi realizada" [...]. O que está em jogo, portanto, não é a criação de uma nova teoria sobre os fundamentos do poder. Para Foucault, o que importa é a criação de um instrumento eficaz de análise das técnicas de poder, é a invenção de uma analítica do poder, é forjar um modo novo e arrojado de descrever os exercícios do poder.
Foucault desenvolveu, no Historia da sexualidade I. A vontade de saber, um elenco de caracte¬rísticas do poder bastante inovador e que procura dar cabo de suas exigências intelectuais, de ca¬ráter acima de tudo metodológico: a) o poder se exerce em inumeráveis lugares ou pontos, em relações móveis e desiguais, dentro da complexa e densa teia social; b) as relações de poder, por¬que se distribuem nos mais diversos pontos de poder, têm um "[ ... ] papel diretamente produ¬tor [...], atribuindo lugares desiguais e focos assimétricos de poder; c) o poder vem de baixo, e dele irradia-se, reproduzindo suas diferentes faces e todas as suas contradições, de tal maneira que as grandes estruturas de dominação são efeitos de largo espectro dos pequenos e nem por isto me¬nos importantes lugares de poder; d) todo poder é intencional, fazendo-se a partir de séries de objetivos e estratégias em conflito, no qual a subjetividade, a condição pessoal, as castas ou as classes dominantes são apenas um aspecto de grandes estratégias anônimas que constituem os lances de dados políticos; e) por este motivo, "[ ... ] onde há poder há resistência [ ... ]", o que sig¬nifica dizer que não existe nenhum lance de poder feito do lado de fora do poder. Poder, enfim, é relação de poder, e em todos os pontos de poder, afirmações e resistências convivem e se con¬frontam. Os aparelhos de Estado são uma integração de múltiplos lugares institucionalizados do poder, e a revolução, por sua vez, consiste num outro lado integrado das relações de poder, ou seja, no amplo e difuso campo das resistências ao poder. O campo de análise dos mecanismos do poder, portanto, enxerga, sempre, as relações e os confrontos de poder.
A fase da analítica do poder é farta em relatos quanto às práticas divisórias e procedimentos estratégicos postos em jogo pelos poderes hegemônicos para executar estruturas de dominação. Certamente, um dos motivos para essa escolha foi a riqueza do instrumental metodológico posto em jogo por Foucault, que trouxe contribuições inovadoras sobre o avanço das tecnologias do poder nos últimos séculos. Apesar de sua militância em movimentos de resistência, nesta época, como o GIP (em torno da questão das prisões), Foucault, em seus livros, pouco escreve sobre as resistências ao poder; na verdade, ele cita, em raras passagens, movimentos contrários à lógica consumista (como os movimentos antipoluição) ou movimentos partidários da liberdade no uso do próprio corpo (como os movimentos pró-aborto).
Outra noção importante desta fase é a que o poder produz, e, mais propriamente, produz a individualidade mesma [...]. Diante de estruturas massivas de poder, os indivíduos não teriam es¬paço (expressivo e importante) para o exercício efetivo da liberdade. A tese de Foucault, na ana¬lítica do poder, é: "o que me parece característica da forma de controle atual é o fato de que ele se exerce sobre cada indivíduo: um controle que nos fabrica, impondo-nos uma individualidade, uma identidade" [...]. Esta convicção foucaultiana é categórica: "creio que, hoje, a individualidade é completamente controlada pelo poder e que nós somos individualizados, no fundo, pelo pró¬prio poder. Dizendo de outro modo, eu não creio que a individualização se oponha ao poder, mas, pelo contrário, eu diria que nossa individualidade, a identidade obrigatória de cada um é efeito e instrumento do poder, e o que este mais teme é a força e a violência dos grupos" [...]. Essa oposição entre grupo e poder, entretanto, não é nada simples; nem toda luta levantada pelos gru¬pos sociais é, efetivamente, luta de resistência ao poder. A oposição grupo versus poder somente pode ser compreendida após uma série de ressalvas levantadas por Foucault. A mais importante delas vem da constatação de que muitas lutas contestadoras seriam, desde seu início, lutas visan¬do à inclusão e/ou legitimação na ordem estabelecida: seria o caso das lutas pelo direito à habita¬ção, saúde, higiene, etc., que acabam consolidando as estruturas do poder e auxiliando para o de¬senvolvimento de suas técnicas de controle das populações, em especial quando entram em jogo tecnologias refinadas de controle a partir do saber-poder contemporâneos.
As lutas desenvolvidas pelos "grupos sociais organizados", cabe o alerta, podem escamotear procedimentos e técnicas de manipulação das massas, característicos do século XX, em especial no campo político. Segundo Foucault, as técnicas de manipulação dos grupos não são específi¬cas dos regimes autoritários; no nosso tempo, são praticados em todos os lugares, inclusive nos países considerados democráticos. Afinal, quem desenvolveu de forma mais cabal e eficaz as téc¬nicas de disciplinarização, normalização, punição e de biopoder dos indivíduos e grupos sociais foram os diversos sistemas políticos inspirados em versões do liberalismo.
O livro de Foucault onde estão presentes importantes análises sobre as técnicas disciplina¬res e os procedimentos de normalização é o Vigiar e punir, de 1975. Tendo por centro do estudo as modificações no campo social, iniciadas com o desenvolvimento do capitalismo no séc. XVII, com repercussões nas grandes instituições do Estado, a disciplinarização, a normalização, a pu¬nição, neste livro, são aspectos interligados e interdependentes que geraram um complexo campo de saber-poder desenvolvido nos últimos quatro séculos. Sobre as técnicas disciplinares, Foucault alerta para o fato de que na Idade Clássica o corpo tornou-se objeto de uma série de atentas análises visando a manipulá-lo, dirigi-lo, adestrá-lo, habilitá-lo. Quando a questão pas¬sou a ser o controle e correcão das operações do corpo, entrou-se na era do homem-máquina, do homem objeto de estudos que pretendem aperfeiçoar e tornar mais produtivo, no detalhe, o uso do corpo em ação na fábrica, na caserna, na prisão, etc. Doravante, as técnicas disciplinares ge¬ram estudos pormenorizados e incansáveis sobre a otimização possível de um corpo submetido a padronizações e regulações, segundo a racionalidade do capitalismo em vias de desenvolver. "Os métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram o assujeitamento [...] constante de suas forcas, e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, é a isto que podemos denominar de “disciplinas”.
Já o processo de normalização complementa e aprofunda as técnicas disciplinares, quando procura instituir delimitações e padronizações da vida subjetiva e dos comportamentos indivi¬duais ou coletivos, de modo a organizar a lei, a palavra ou o texto, a tradição, nosso modo de ser. Por isto, "[...] a normalização torna-se um dos grandes instrumentos do poder no fim da Idade Clássica" [...], onde se conhece, na medida do possível, a alma humana, para mantê-la assujeitada. Professores, juízes, médicos, advogados, lideranças sociais, os pais de família, todos são convo¬cados nos fins do século XVIII, a se tornarem juízes da normalidade. Todos tornam-se, durante sua vida, sujeitos a exames de toda ordem. Aos anormais, desviantes, diferentes, tratamentos se¬melhantes: sanção legal, casa de correção, manicômios, tratamentos médicos e psiquiátricos, prisão, todo um arsenal de instituições normalizadoras proliferam a partir desta época. No limi¬te, a prisão, o afastamento provisório ou total. Ao fim e ao cabo, no ápice das articulações de ins¬tituições normalizadoras, assiste-se à grande aliança entre o poder judiciário e o poder médico, que passam a ser aliados indissociáveis no exercício de poder na Modernidade. [...]
Biopoder
Um terceiro momento no crescimento das técnicas de controle é o biopoder. Suas análises a este respeito se encontram no final da História da sexualidade I e nos seus cursos no Collége de France entre 1975 e 1978. O biopoder representa um acréscimo ao agenciamento entre o judiciá¬rio e o saber médico que se consolidou nos fins do séc. XVII, O que foi gerado de fins do século XIX até hoje, segundo Foucault, quando se ampliou o raio de ação política do biopoder, é dra¬mático. Pois o exercício do biopoder passa a revelar um modo de funcionamento paradoxal: voltado para o controle e gestão de sua população e de tudo o que pode ameaçá-la, como epidemias, doença, e até mesmo inimigos nacionais, países rivais, a partir do século XX, os regimes passa¬ram a realizar "[ ... ] holocaustos sobre sua própria população" [...]. O que perturba Foucault é que o biopoder, centrado, nos seus começos, na proposta de gerir a vida e fazer viver, tenha se conver¬tido num poder de morte: "como é possível que um poder político mate, reivindique a morte, faça matar, dê a ordem de matar, exponha à morte não apenas seus inimigos, mas também seus cidadãos¿ [...]. Sua resposta é que a morte da população decorre da criação de uma nova forma de racismo, de caráter estatal e praticado segundo preceitos racionais e técnicos, "o que permitiu a inscrição do racismo nos mecanismos do Estado foi, justamente, a emergência do biopoder. Este é o momento em que o racismo se introduz como mecanismo central do poder, e segundo as mo¬dalidades que são exercidas nos Estados modernos".". Situado no cerne do poder de estado no úl¬timo século, o biopoder, vale a pena alertar para o fato, não ocorre apenas sob o aspecto biológico, mas também recobre o exercício político do Estado homicida e eliminador de todos os indesejá¬veis, reais e virtuais: “ [... ] quando falo de homicídio, não penso tão-somente no assassinato direto, mas em tudo que pode ser, também, morte indireta: o direito de expor à morte ou de multiplicar para alguns o risco de morte - ou, mais simplesmente, a morte política, a expulsão" [...].
Malgrado a força descritiva dos mecanismos e técnicas de poder apresentados na analítica de poder, Foucault percebe, a partir de 1978, que sob certas condições a força dos indivíduos e dos grupos tem o potencial de contestar os sistemas hegemônicos de poder e consegue modificá-los. Esse é o problema que anima o Foucault da fase ético-política (1978-1984), que passa a estudar o papel das resistências, em todas as suas dimensões, na trama complexa das relações de poder na atualidade, seus antecedentes históricos e suas perspectivas de êxito. Seu interesse passa a ser os combates e as lutas inerentes às relações de poder, e não apenas a descrição das grandes articula¬ções institucionais e políticas que formam as grandes estruturas de poder e que persistem num lar¬go espaço de tempo. Desde então, Foucault, passa a considerar que as resistências ao poder devem ser entendidas como sendo aquelas que visam a defesa das liberdades individuais e coletivas.
Todavia, o papel da liberdade dos indivíduos nas lutas políticas não é para ser entendido como uma petição de princípio teórica; deve ser elucidado no plano das lutas sociais, precárias, contingentes, móveis. O campo da liberdade é o da ética encarnada: "o que eu quero analisar são práticas, é a lógica imanente à prática, são as estratégias que sustentam a lógica dessas prá¬ticas e, por conseguinte, a maneira pela qual os indivíduos, livremente, em suas lutas, em seus afrontamentos, em seus projetos, constituem-se enquanto sujeitos de suas práticas ou recu¬sam, pelo contrário, as práticas que se lhes são propostas. Eu acredito solidamente na liberda¬de humana" [...]. O esforço de Foucault, como se pode ver, é o de responder a críticos que veem no seu trabalho um niilismo que aniquila todo espírito de luta: "nestes casos de dominação - ¬econômica, social, institucional, ou sexual-, o problema, com efeito, é o de saber onde vai se formar a resistência ... Numa tal situação de dominação, deve-se responder a todas essas ques¬tões de um modo específico, em função do tipo e da forma precisa de dominação. Aliás a afirma¬ção: 'você enxerga o poder em todo lugar; logo não existe lugar para a liberdade', parece-me absolutamente inadequada. Não se pode me atribuir a idéia de que o poder é um sistema de do¬minação que tudo controla e que não deixa nenhum lugar para a liberdade" [...]. Foucault, em sua fase ético-política, quer mostrar o quanto está interessado em contribuir para o processo criativo das lutas de resistência, que constituem uma nova economia das relações de poder, pois "tudo isto está totalmente ligado a uma prática e a estratégias que são, por sua vez, móveis e se transformam” [...]. A criatividade das estratégias e das lutas, portanto, decorrem das artimanhas da liberdade, e sua investigação "[ ... ] consiste em tomar as formas de resistência aos diferentes tipos de poder como ponto de partida” [...].
Os nexos entre resistência, liberdade e relações de poder são postos, por Foucault. de ma¬neira contundente, na seguinte passagem: "quando se define o exercício do poder como um modo de ação sobre a ação dos outros, quando o caracterizamos pelo 'governo' dos homens uns sobre os outros no sentido mais largo do termo inclui-se, neste caso, um elemento importante: a liberdade. O poder não se exerce senão sobre 'sujeitos livres' e enquanto são “livres” enten¬damos por isso sujeitos individuais ou coletivos que tem diante de si um campo de possibilidades no qual muitas condutas, muitas reações e di versos modos de comportamento podem ter lu¬gar. Onde as determinações estão saturadas, não há relações de poder: a escravidão não é uma re¬lação de poder quando o homem está acorrentado (trata-se, então, de um relação física constrangedora), mas somente quando o homem pode movimentar-se e, no limite, fugir" [...].
Não existe luta possível entre liberdade e poder num regime de terror, como nos regimes autoritários e burocráticos, como no stalinismo, nazi - fascismo, ditadura de Pinochet (Chile), re¬gime de Reza Palevi (Irã), Camboja, etc. Mas a forca, se impede, não constitui uma impossibili¬dade para a liberdade, quando ela encontra ensejo para se exercer. A liberdade, por sua condição ontológica, é insubmissa. Diz sempre não as forças que procuram controlá-Ia. E o faz de modo que é necessariamente, em condições fora do terror e do constrangimento, o de um afrontamen¬to contínuo. Como alerta Foucault, "o problema central do poder não é o da 'servidão voluntá¬ria' (como poderíamos desejar ser escravos¿): no cerne da relação de poder, "induzindo-a' cons¬tantemente, temos a reatividade do querer e a ‘intransitividade’ da liberdade. Mais que de um 'antagonismo' essencial, seria melhor falar de uma 'agonística' ... , uma relação que é, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta; trata-se menos de uma oposição termo a termo que os bloqueia um face a outro e, bem mais, de uma provocação permanente"[...]
Inexiste mundo sem forças, o mundo em que estamos é feito de forças advindas dos corpos e do encontro entre corpos, As relações de poder decorrem de um mundo de forças em afronta¬mento, de contraste e quiçá combate entre campos de intensidade diferentes. E, por este motivo. Foucault afirma: "uma sociedade sem 'relações de poder' nada mais é do que uma abstração. I,,,] Pois dizer que não pode existir sociedade sem relações de poder não significa dizer que elas [as relações de poder] são necessárias, nem significa dizer que toda modalidade de poder, no seio da sociedade, constitui uma fatalidade insuperável: significa, todavia, que a analise, a elaboração, o questionamento das relações de poder, a 'agonística' entre as relações de poder e a intransitividade da liberdade são uma tarefa política incessante; que ela é, propriamente, a tarefa política inerente a toda existência social [...].
Liberdade e poder, portanto, se enfrentam de maneira constante I' sem síntese dialética, Isto é, sem nenhuma solução pensável a médio e longo prazos. Toda experiência, seja de exercício da liberdade, seja de dominação nas relações de poder, ocorre tão-somente em ato, o poder e as re¬sistências ao poder, dizendo de outra maneira, são faces diversas da moeda, em contraste perma¬nente, Pode até mesmo ocorrer equilíbrio provisório de forças, nunca uma forma de paz durável vinda da ausência de lutadores na arena da agonistica. Como Foucault já afirmara na Historio da sexualidade I. A vontade de saber, onde há poder, há resistências. De tal modo que é possível e até mesmo imaginável que a "dominação" nas relações de poder não seja o modo principal de relacio¬namento político em sociedades onde as estratégias e as táticas de resistência aos poderes têm êxito em transformar situações aparentemente insuperáveis. Inexiste, na verdade, situações po¬líticas e quadros políticos permanentes, pouco importa aonde no planeta, qualquer que seja a época. O que vale para todo modo de convivência humana, pois segundo Foucault "aquilo ao qual estou atento é o fato de que toda relação humana é, num certo sentido, uma relação de po¬der. Nós nos movimentamos num mundo de relações estratégicas perpétuas. Nenhuma relação de poder é má nela mesma, mas é um fato que comporta perigos, sempre [...].
Os dois polos, poder hegemônico e liberdade, no seu embate agonístico, geram contextos éticos e políticos sempre provisórios. É até mesmo possível que certas relações de dominação possam perdurar - séculos ou milênios, em certas partes do planeta: todavia, isto não quer dizer que suas relações de poder não tenham passado por transformações inevitáveis, resultado dos constantes enfrentamentos das resistências ao poder, nem quer dizer que estruturas de poder aparentemente inabaláveis um dia caiam por terra. É incontestável: não há, não houve, nem ha¬verá Estado, relações de poder, impérios que durem eternamente.
Existem também razões filosóficas para esta concepção agonística do poder em Foucault. Uma percepção agonística do poder não tem nenhuma vinculação nem com o contratualismo, nem com consentimentos ou servidões voluntárias, nem com a crença numa hipotética expro¬priação originária (mesmo em suas diversas variantes dialéticas). Num mundo pautado pela agonísrica, por outro lado, não poderia existir finalismo histórico, nem qualquer modalidade de crença num telos ou destinação humana. O enfrentamento agonístico pressupõe campos de luta sempre abertos, pela razão de que são constituídos por forças em luta estratégica e sem descanso. Entre relações estratégicas e liberdade, portanto, derivam-se diversos campos acontecimentais do poder e da história.
O verdadeiro campo de luta, ao ver de Foucault, é o que abre as portas a um exercício de li¬berdade autônomo e radical. Assim, Foucault concede lugar a múltiplas modalidades de luta em jogo na atualidade, como "as lutas contra a dominação (étnicas, sociais, religiosas), as lutas con¬tra as formas de exploração (que separam o indivíduo do que ele produz), e, finalmente, as lutas que levantam a questão do estatuto do indivíduo (lutas contra o assujeitamento, contra as diver¬sas formas de subjetividade e submissão [...].
Contrapondo-se às técnicas, conhecimentos e procedimentos de controle das subjetivida¬des, Foucault entende que as lutas de resistência em torno do estatuto da individuação podem ser assim sintetizadas: "sem dúvida, o objetivo principal, hoje, não é o de descobrirmos, mas o de nos recusarmos a ser o que somos [...] A questão, assim, é inventar novos modos de subjetivi¬dade, novos estilos de vida, novos vínculos e laços comunitários, que se contrapõem aos siste¬mas hegemônicos de poder. Como criar novas formas de subjetividade e novas experimentações políticas a partir de forças que agem no sentido de determinar os sujeitos e assujeitá-Ios?
Foucault procura resolver esta complexa questão, com ínventividade invulgar, em especial no seu pequeno e denso texto Qu 'est-ce que les Lumières? [...] (O que é esclarecimento ¿), inspirado em texto com igual título, escrito séculos atrás por Immanuel Kant. O esclarecimento, lembra Foucault, seguindo o caminho aberto por Kant, é a passagem da minoridade para a maioridade, pro¬cesso que acontece quando uma pessoa ou uma coletividade ousa pensar e agir com autonomia, sem necessidade de recorrer a guias, autoridades e mestres. A maioridade depende da modificação, portanto, do uso da razão, da vontade, da relação delas com a autoridade. Neste processo de passagem da minoridade para a maioridade já está em ação um embate agonístico, importa lem¬brar. Maior é todo aquele que deseja pensar e agir, por si próprio, sem líderes que pensem e ajam em seu lugar; menor é aquele que não deseja pensar e agir com autonomia e que acata aqueles que se outorgam à tarefa de cuidar dele, mantendo-o, consequentemente, na condição de mino¬ridade. Todavia, Kant já chamava a atenção para isto no seu texto, o responsável por se estar na minoridade é, necessariamente, aquele que abre mão da autonomia e que aceita ser tutelado, ma¬nipulado, guiado.
A novidade de Foucault face a Kant, malgrado toda sua deferência ao filosofo alemão, está na percepção de que o esclarecimento e a maioridade não devem ser entendidos como um perío¬do da história ou como uma etapa do espírito humano; ao contrário, Foucault define o esclareci¬mento como um fato agonístico. a partir do qual o esclarecimento é percebido como sendo uma "atitude de modernidade", que comporta riscos e acarreta temores: "o que quero dizer por atitu¬de: um modo de relação com a atualidade; uma escolha voluntária, que é feita por alguns: enfim, uma maneira de pensar e sentir, também uma maneira de agir e de se conduzir que, ao mesmo tempo, marca um pertencimento e se apresenta como uma tarefa” [...] Esclarecimento e liberdade se imbricam, de forma vivida, sentida, experimentada, num processo agonístico que ocorre en¬tre liberdade e submissão, entre assujeitamento e experimentação da autonomia.
A atitude de modernidade consiste, portanto, num êthos filosófico, que "[ ... ] consiste numa crítica do que somos, pensamos e fazemos, através de uma ontologia histórica de nós mesmos";;. Totalmente interessada na atualidade, a atitude de modernidade torna realizável o que percebe ser a tarefa que se apresenta logo depois do diagnóstico do presente. Neste exato momento, a ati¬tude de modernidade torna-se atitude-limite, prática transformadora da vida, subjetiva ou so¬cial. Deste modo, a atitude-limite, nas palavras de Foucault, escapa da velha imagem do dentro e do fora, para se situar nas fronteiras, dirigindo-se, na medida do possível, para a ultrapassagem dos limites, para a ampliação do exercício da liberdade. E, neste momento, fica marcada a dis¬tância entre a crítica em Foucault e a de Kant: para o primeiro, "trata-se de transformar a crítica exercida na forma de uma limitação necessária numa crítica prática na forma de uma liberação possíve [...]. A atitude-limite, entra em vigor a partir do momento em que "procura relançar, tão longe e tão amplamente quanto possível o trabalho indefinido da liberdade"[...].
É interessante observar que a expressão "ultrapassagem" ou "Iiberação" (franchissement), é totalmente diferente da expressao "transgressão" (transgression). Além de não possuir as denota¬ções psicológicas e psicanalíticas totalmente estranhas às operações da ontologia crítica de nós mesmos, trata-se, no processo de liberação, de abrir caminhos para a invenção de novas práticas de pensamento, de práticas éticas novas e de práticas políticas inovadoras. Na atitude-limite, situada na fronteira, no limiar, porque está num campo estratégico de luta, toda transformação mostra-se parcial e circunscrita (por oposição a todo projeto de transformação social global e ra¬dical). Específica é a luta de liberação, como parciais são os resultados práticos das lutas advin¬das da recusa do assujeitamento. Nada de gestos demasiado heróicos nem de perspectivas de fu¬turo messiânicas. Os projetos de transformação sociais postos em jogo no século XX, pouco im¬portando sua coloração ideológica, não levaram a nada além do que decepções, sacrifícios coleti¬vos, dores do mundo. As razões parciais e sob limites, apesar de todos os riscos, realizam trans¬formações que podem ser tanto individuais quanto coletivas ou comunitárias, pois estes são agentes em relações de poder com força para transformarem e ultrapassarem limites sempre que se apresentarem situações oportunas. Em todo caso toda tarefa de libertação é resultado do "[ ... ] trabalho de nós mesmos sobre nós mesmos enquanto seres livres [...]. As tarefas de liberação indi¬viduais ou coletivas, porque são feitos numa ótica parcial e de estarem sempre diante de uma li¬mitação a ser superada, acaba por levar Foucault postular a hipótese da agoriística interminável da liberdade e de suas lutas nas relações de poder: "a experiência teórica e prática que fazemos sobre nossos limites e sua superação possível é sempre limitada, determinada, devendo, pois, re¬começar"[...]. As lutas de liberação são constantes e diversas, nos seus escopos próprios, múltiplas dimensões, momentos variados da vida individual ou da história das coletividades, comportan¬do diferentes modalidades de realização na experiência humana. Não são apenas as lutas que são muitas, mas são muitos os momentos, graus, gradientes e etapas dessas lutas, dependendo de muitos fatores, o que faz da ultrapassagem um ganho conquistado diferencialmente pelas pesso¬as e pelas sociedades.
A atitude-limite, portanto, tem na prática sua prova. Iniciada, quiçá, na teoria, em certos ca¬sos, a atitude-limite tem sua vida plena e toda sua força nas experiências de transformação dos sujeitos e das relações de poder. É por este motivo que o trabalho crítico é sua condição prévia: a razão, quando põe limites ao uso da razão, à própria razão e à consciência, exige, logo depois, "[ ... ] o trabalho sobre nossos limites, isto é, um labor paciente que dá forma à impaciência da li¬berdade"[...]. Como se vê, trata-se de lutas de libertação, subjetivas ou não, e de superação de limi¬tes. Por outro lado, a questão é ampliar o campo da liberdade, através da invenção de novas for¬mas de vida e de novas experiências subjetivas, o que refuta, de modo categórico a crença - que tem sido desenvolvida por alguns - de que o último Foucault está preocupado com o cuidado de si, na forma da relação do sujeito com sua própria verdade e identidade, ao longo da história. Tal hipótese é difícil de sustentar. O que interessa a Foucault é a atualidade e o porvir, o que vale a pena é inventar-se e reinventar o mundo, realizando o devir e a promessa de futuro intrínseca aos nexos da liberdade.
Foucault faz questão de opor, na fase ético-política, Kant a Descartes. O sujeito cartesiano, supostamente universal e a-histórico, é posto em xeque por Kant, inaugurando a idade da Críti¬ca, através da qual a razão passa a impor limites ao excesso de racionalização nas sociedades de controle, logo aos excessos de controle de nossas vidas. Devido a ela, temos condição de "[ ... ] compreender por quais mecanismos nós nos tornamos prisioneiros de nossa própria história” [...].
A Crítica tem o efeito paradoxal de levar a uma experiência de Iibertação, de superação de limites, chegando a uma situação na qual o) sujeito se percebe logo depois dentro de limites, que veem a ser ultrapassado, processo interminável de invenção de novas formas de vida e de novas experiências sociais. O trabalho da liberdade e seu papel de resistência nas relações de poder, re¬alizado pelas ati tudes- limite, é interminavel".
Participando diretamente em movimentos sobre as prisões, sobre os manicômios, lutas de gênero, a favor do aborto, em torno da ecologia, contra a exploração econômica dos povos do Terceiro Mundo, até mesmo pelos direitos humanos (enquanto lutas de resistência ao poder) e, principalmente, nas lutas contra o biopoder e o racismo de Estado, Michel Foucault sempre dei¬xou claro que é um pensador voltado para seu tempo e interessado no futuro. O passado é mera ilustração, e o futuro, o resultado acontecimental das forças em jogo no presente, nas quais pode¬mos atuar e intervir como militantes da liberdade. [...]
Conceitos-chave
Enunciado: na fase da arqueologia do saber, Foucault sustentava que sua ambição teórica era descrever, no espaço intermediário entre as experiências e as teorias, um conjunto finito e mais fun¬damental de enunciados, que seriam as matrizes das positividades e das práticas de um certo mo¬mento da história. Situadas num campo imaterial e formal, elas são o objeto do arqueólogo do saber, cuja meta, numa perspectiva sistêrnica, é "[ ... ] descrever enunciados, grupos inteiros de enunciados, fazendo aparecer relações de implicação, de oposição e de exclusão que poderiam religá-las?".
Em importante texto da fase arqueológica, Sobre a arqueologia das ciências. Resposta ao Circulo de Epistemologia, Foucault explica o estatuto do enunciado da seguinte maneira: "[ ... ] um enuncia¬do é um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar completamente. Estranho acontecimento, com certeza: primeiro, porque está ligado, por um lado, a um gesto de escritura ou à articulação da fala, mas, por outro lado, abre a si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, livros, ou outra forma qualquer de regis¬tro; depois, porque ele é único, como todo acontecimento, mas aberto à repetição, à transforma¬ção, à reativação; finalmente, porque está ligado, simultaneamente, a situações que o provocam e a consequências que incita, mas também porque está ligado, ao mesmo tempo, e segundo uma mo¬dalidade bem diferente, a enunciados que o precedem e lhe dão continuidade".
São os enunciados, em último caso, que possibilitam o surgimento do arquivo, entendido como sendo "[...] o jogo das regras que determinam uma cultura, a aparição e o desaparecimento de enunciados, sua permanência, sua dissolução, sua paradoxal existência enquanto aconteci¬mentos e coisas ".. Como bem afirma Foucault, os sistemas de enunciados formam 'l .. ] o incons¬ciente, não do sujeito falante, mas da coisa dita..,[...] .

Acontecimento: é conceito filosófico muito importante na obra de Foucault, a partir dos anos 1970. Foucault compreendeu bem o estatuto ontológico do acontecimento [...]: o acontecimento não é nem um fato nem uma ocorrência trivial para os órgãos sensoriais: antes disto, é um efeito transitório decorrente da força inerente a toda coisa do mundo, a todos os corpos, de onde ema¬nam forças de diferentes tipos. Dos corpos, do nexo entre corpos, no devir destes encontros en¬tre corpos, decorrem efeitos, transitórios, temporários, e a estes pontos de conexão os estóicos [...] foram os primeiros a designar como acontecimentos. Tradutores sem maiores contatos com a fi¬losofia traduziram "acontecimento" por "evento [...]. O acontecimento é um efeito temporário do jogo de forças e dos encontros corporais. O acontecimento, portanto, não é um corpo, mas de¬corre dos corpos, o que levou Foucault a repetir, inúmeras vezes, que a sua teoria era tributária do "materialismo do incorpora":[...]. Acontecimentos-forças induzem a um mundo agonístico de relações cujo caráter é vitalista. O mundo é um complexo campo de forças vitais, que entretém umas com as outras modalidades diversas de articulação e causalidade que não constituem um mundo simples, óbvio, monótono. O mundo é complexo, feito de feixes diferentes de conexão entre forças, onde o embate é parte constitutiva e no qual a vida e a força estão no ponto de irrup¬ção das relações existentes.
Estética da existência: uma passagem importante de Foucault é a seguinte: "o que me surpre¬ende é que em nossa sociedade a arte esteja relacionada apenas aos objetos e nunca aos indivídu¬os e à vida; e, também, que a arte esteja num domínio especializado, o dos experts que são artistas. Mas a vida de todo indivíduo não é uma obra de arte? Por que uma mesa ou uma casa são objetos de arte, mas não as nossas vidas ? [...]
Tal passagem ganha sentido pleno quando vinculada ao campo das resistências ao poder, onde a noção de "estética da existência" verdadeiramente reverbera. Foucault faz questão de afirmar, de maneira a não deixar qualquer dúvida, que a estética da existência, enquanto atitude pela qual tornamo-nos artífices da beleza de nossa própria vida, é um estilo de vida de alcance comunitário, por ele também denominado de modo de vida "artista", realizável por todo aquele que seja capaz de questionamento ético e que seja realizador, a seu algum modo, da atitude de modernidade: "o prazer por si pode perfeitamente assumir uma forma cultural, como o prazer pela música. E deve-se compreender que trata-se, nesse caso, de alguma coisa muito diferente do que considera-se interesse ou egoísmo. Seria interessante verificar como, no século XVIII e XIX, toda uma moral do 'interesse' foi proposta e inculcada na classe burguesa - por oposição, sem dúvida a todas as artes de si mesmo que poder-se-iam encontrar nos meios artístico-crí¬ticos; a vida 'artista', 'o dandismo', constituíam outras estéticas da existência opostas às técnicas de si que eram características da cultura burguesa":".
A estética de si representa a antítese do individualismo burguês obcecado pela segurança, defesa da propriedade, previdência social, vida confortável dos membros da família; na verdade, a estética da existência é uma moral compartilhada por toda uma comunidade desvinculada da moral do "interesse" existente na sociedade burguesa. A estética da existência, considerada des¬te ponto de vista, implica em valores e formas de vida criativos, solidários, generosos e ousados, no limite possível da experimentação histórica, Foucault não para aí. e ainda acrescenta: eu evoquei, há pouco, a vida 'artista', que teve uma importância imensa no século XIX. Poder-se-ia também considerar a Revolucão, não apenas como um projeto político, mas como um estilo, um modo de existência com sua estética própria, seu ascetismo, formas particulares de relação con¬sigo mesmo e com os outros" . A estética da existência pode e deve ser compreendida à luz des¬sas declarações, como um dos modos possíveis de reaiização da liberdade, podendo ter all' mesmo carater revolucionário.
Cuidado de si: designa uma modalidade de problematização moral, no periodo helenístico, onde se desenvolveu toda uma preocupação do indivíduo consigo mesmo. Este tipo de preocupação consigo mesmo, cabe notar, não se confunde, a nenhum termo, com o que foi praticado pelas classes burguesas no sendo XIX, via individualismo e cuidado com a vida privada. Na Antiguidade, o cuidado de si representava a sabedoria de saber viver e de dar estilo a si mesmo e a sua vida, através de um processo que é perceptível no mundo social. O cuidado sii consiste num saber, numa práatica, num modo de ser. Trata-se, enfim, de uma arte de viver.
O que está em jogo, no cuidado de si, "é o desenvolvimento de uma arte da existência que gira em torno da questão de si mesmo, sua dependência e sua independência, sua forma universal, o lu¬gar que pode e deve estabelecer com os outros, os procedimentos pelos quais exerce o controle sobre si próprio, e a maneira pela qual pode estabelecer soberania plena sobre si mesmo ,,.[...]
Nada mais ridículo para Foucault que qualquer modo de utilização moralista e ordenada do cuidado de si. A tal ponto, que para dar o tom, o filósofo afirma: "a austeridade sexual na sociedade grega era um luxo, um refinamento filosófico, era um fato em pessoas muito cultas; eles procuravam dar às suas vidas grande intensidade e imensa beleza. De certo modo, viu-se a mes¬ma coisa no século XX, quando as pessoas, para terem uma vida mais bela e exuberante. procu¬raram se desembaraçar dos constrangimentos sexuais que lhes eram impostos pela sociedade. Na Grécia, Gide seria tido como um filósofo austero" [...]. Claro que Foucault faz questão de des¬vincular a atualidade do mundo grego.".
O que é central, na fase ético-política, são as lutas de resistência. Foucault decididamente toma partido pela versão mais corrosiva e libertária do "cuidado de si", onde o indivíduo em vias de inventar-se e dar norte à sua liberdade (como Gide), se fabrica, a partir de uma cuidadosa ontologia e criteriosa reflexão sobre os desafios abertos pelo tempo presente, entrando sempre em luta com os poderes hegemônicos, estilos de vida tradicionalistas, etc. [...]
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